terça-feira,
3 julho, 2018 - 13h39 | ÁGUA
Pesquisa
traça 2 mil anos da história das chuvas no Brasil
Entre
1500 e 1850, a Europa esteve imersa na chamada Pequena Era do
Gelo, período no qual as temperaturas médias no
hemisfério Norte eram consideravelmente inferiores às
atuais
Peter
Moon | Agência FAPESP
|
 |
Pesquisa
traça 2 mil anos da história das chuvas no Brasil
- Registros isotópicos obtidos em cavernas revelam
como variou a distribuição de chuvas no país
durante mudanças climáticas globais que afetaram
a Europa na Idade Média | Novello e outros / Geophysical
Research Journal |
|
Até
agora os efeitos daquela queda de temperatura sobre o clima da
América do Sul eram pouco conhecidos, mas um novo estudo
mostra que, nos séculos 17 e 18, o clima do sudoeste do
Brasil era mais úmido que o atual, por exemplo. Ao mesmo
tempo, o clima do Brasil do Nordeste era mais seco. O estudo foi
feito a partir da análise de rochas de cavernas em Mato
Grosso do Sul e em Goiás.
Os mesmos
registros de cavernas brasileiras revelaram que, entre os anos
900 e 1100, durante a chamada Anomalia Climática Medieval
– período em que o clima no hemisfério Norte
era mais quente do que o atual –, o clima era mais seco
no Brasil.
Trata-se
de uma das primeiras evidências a constatar uma relação
entre as mudanças climáticas observadas durante
a Pequena Era do Gelo e a Anomalia Climática Medieval no
hemisfério Norte e alterações no padrão
de chuvas sobre a América do Sul.
Publicado
em artigo no Geophysical Research Journal, o trabalho tem como
autores o físico Valdir
Felipe Novello e o geólogo e professor
Francisco
William Cruz, do Instituto de Geociências
da Universidade de São Paulo (USP), ao lado de colaboradores
brasileiros, norte-americanos e chineses, e integra o projeto
PIRE-CREATE, apoiado
pela FAPESP.
“Trabalhamos
em diversas escalas de tempo. Há estudos que investigam
o paleoclima há dezenas ou centenas de milhares de anos.
No novo estudo, investigamos alterações climáticas
durante os últimos dois milênios”, disse Cruz.
Novello,
primeiro autor do artigo, destaca que “há evidências
abundantes de que o clima no hemisfério Norte era mais
frio durante a Pequena Era do Gelo”. São evidências
históricas e culturais, como relatos escritos ou pinturas
de época exibindo o frio na Europa do século 17,
por exemplo.
A essas
evidências se somam outras, como os registros de gases aprisionados
há séculos no gelo de geleiras na Groenlândia,
o registro de isótopos preservados no lodo do fundo de
lagos e lagoas ou ainda a análise dos anéis de crescimento
das árvores.
“Um
problema que se enfrenta para investigar os paleoclimas do hemisfério
Sul é a ausência de dados históricos ou culturais.
Na Idade Média, antes da era dos descobrimentos, nem os
incas nem as diversas nações indígenas possuíam
escrita. O mesmo ocorria entre as tribos africanas e os aborígenes
australianos”, disse Novello.
“Some-se
a isso o fato de que nos trópicos quase não há
geleiras, à exceção daquelas no alto dos
Andes. Daí que precisamos encontrar outros métodos
de análise para descobrir como era o clima do passado na
América do Sul. No grupo do professor Cruz, viajamos pelo
Brasil coletando amostras de rochas no interior de cavernas. A
composição dos isótopos de oxigênio
no carbonato de cálcio depositado ao longo de séculos
e milênios para formar espeleotemas [estalagmites e estalactites]
indica se o clima era mais seco ou mais úmido no passado”,
disse.
Isótopos
da seca e da chuva
Para entender
como foi que Novello detectou os períodos de maior ou menor
umidade no paleoclima brasileiro, antes é necessário
explicar como se chegou aos resultados. O trabalho é baseado
na análise isotópica do oxigênio das moléculas
de carbonato de cálcio dos espeleotemas das cavernas.
Isótopos
são variantes de um elemento químico. Enquanto todos
os isótopos de um dado elemento compartilham o mesmo número
de prótons, cada isótopo difere dos outros em seu
número de nêutrons. Assim, o elemento químico
oxigênio tem em seu núcleo 8 prótons e 8 nêutrons,
no caso do oxigênio 16 (16O). Já no caso do oxigênio
18 (18O), são 8 prótons e 10 nêutrons.
“Há,
na natureza, aproximadamente um átomo de oxigênio
18 para cada mil átomos do oxigênio 16”, explicou
Novello. Como o oxigênio 18 é mais pesado do que
o 16, quando começa a chover as moléculas de água
com o oxigênio 18 precipitam primeiro.
Em consequência,
ocorre uma elevação relativa da quantidade de oxigênio
16 na nuvem de chuva em relação à quantidade
de oxigênio 18, agora necessariamente menor – dado
que a maior parte do oxigênio 18 original precipitou como
chuva. “Quando chove muito, muda a isotopia da chuva”,
disse.
Para saber
como tal mudança no regime de chuvas pode ser aferida em
climas passados, Novello e Cruz recorreram ao registro da relação
oxigênio 16/18 preservado no carbonato de cálcio
dos espeleotemas das cavernas.
Quando
a chuva cai em regiões de Carste, ou seja, aquelas formadas
por rochas carbonáticas (como o calcário), ocorre
a formação de cavernas. A água pluvial entra
em contato com o gás carbônico (CO2) dissolvido no
ar e no solo. O resultado dessa reação química
é uma água ligeiramente ácida, que vai penetrando
no solo até chegar às rochas calcárias subterrâneas.
A rocha
calcária é insolúvel em água de pH
neutro, mas dissolve em presença de água ácida
(pH ligeiramente negativo), o que leva à formação
das cavidades subterrâneas naturais a que damos o nome de
cavernas.
Os pesquisadores
explicam que a formação de espeleotemas ocorre quando
a água da chuva que penetrou no solo (carregando carbonato
de cálcio) atinge o teto da caverna. O gotejar lento e
contínuo ao longo de milhares de anos vai precipitando
o carbonato de cálcio dissolvido em cada gota na forma
de espeleotemas, que acaba por se acumular no teto da caverna
formando estalactites e no piso da caverna formando estalagmites.
O carbonato
de cálcio que porventura não precipitou no teto
da caverna é depositado em seu piso em camadas que dão
forma às chamadas estalagmites. Os espeleotemas preservam
a assinatura isotópica do oxigênio da chuva que caiu
na época da deposição de cada camada de carbonato
de cálcio.
“Ao
analisar os isótopos de oxigênio no carbonato de
cálcio dos espeleotemas, a partir da razão encontrada
entre o oxigênio 16 e o 18 consegue-se inferir se o clima
era mais seco (relativamente mais 18) ou mais úmido (relativamente
menos oxigênio 18) quando do momento da deposição
de determinada camada de calcário”, disse Novello.
“Então,
por exemplo, em uma região onde chove muito, a tendência
é achar nos espeleotemas uma sequência de camadas
com quantidade relativamente menor de oxigênio 18. Inversamente,
em regiões de clima seco, a pouca chuva que cai tem relativamente
mais oxigênio 18. Essa água, ao penetrar no solo
e dissolver o carbonato de cálcio, acaba por formar espeleotemas
com uma quantidade relativamente maior de oxigênio 18”,
disse.
Datação
das rochas e análise isotópica
Valdir
Novello coletou amostras de rocha de duas estalagmites da gruta
Jaraguá, em Bonito (MS), e de estalagmites das grutas São
Bernardo e São Mateus, localizadas no Parque Estadual de
Terra Ronca, em Goiás.
Na gruta
Jaraguá foram coletadas duas amostras de duas estalagmites
diferentes. Uma delas mede 13 centímetros e, de acordo
com o método de datação urânio/tório,
cresceu continuamente por 800 anos, entre 1190 e 2000, o que abarca
o período da Pequena Era do Gelo (entre 1500 e 1850). A
segunda amostra, com 28 centímetros, se formou continuamente
entre os anos 442 e 1451, englobando a Anomalia Climática
Medieval (entre 900 e 1100).
Em Goiás,
Novello coletou na gruta São Bernardo uma amostra de rocha
com 37 centímetros, cobrindo o período entre os
anos 1123 e 2010, o que engloba a Pequena Era do Gelo. Da gruta
São Mateus saiu uma amostra com 17 centímetros,
acumulada no intervalo de tempo entre 264 e 1201, o que compreende
o período da Anomalia Climática Medieval.
O perfil
de oxigênio 18 nas amostras da gruta Jaraguá exibe
uma leve tendência em direção a valores mais
leves de oxigênio entre os anos 400 e 1400, o que sugere
um clima levemente úmido no território do Brasil
central daquele período (que abarca a Anomalia Climática
Medieval no hemisfério Norte).
Depois
de 1400, os valores do oxigênio 18 nas amostras da gruta
Jaraguá começam a declinar até 1770, sinalizando
o aumento da umidade durante o período, que corresponde
à Pequena Idade do Gelo no hemisfério Norte. Posteriormente,
a tendência é invertida e os valores aumentam novamente
até 1950, sinalizando a queda da umidade desde então.
O registro
de oxigênio 18 do Brasil central baseado nas estalagmites
das grutas São Bernardo e São Mateus, em Goiás,
não apresenta uma tendência. O registro mostra alguns
eventos úmidos abruptos, como os períodos úmidos
prolongados entre 680 e 780 e entre 1290 e 1350, e eventos úmidos
mais curtos ocorrendo por volta de 1050, 1175 e 1490.
Por outro
lado, o período úmido documentado no registro da
gruta Jaraguá durante a Pequena Era do Gelo, entre 1500
e 1850, é consistente com as condições úmidas
favorecidas pela passagem da chamada Zona de Convergência
do Atlântico Sul (ZCAS), que é uma faixa de nebulosidade
de orientação noroeste/sudeste que se estende desde
o sul da região amazônica até a região
central do Atlântico Sul.
“A
Zona de Convergência do Atlântico Sul é a massa
de nebulosidade responsável pela ocorrência de chuvas
prolongadas na região Sudeste. Os isótopos contam
toda a história dessa massa úmida andando pelo continente”,
disse Novello.
“Sabe
aqueles dias em que chove bastante em São Paulo? Sempre
que chove cinco dias seguidos é porque a nebulosidade da
Zona de Convergência do Atlântico Sul está
estacionada sobre São Paulo. A grande seca de 2014 foi
causada pela não formação da Zona de Convergência
do Atlântico Sul naquele ano”, disse Cruz.
Em um
trabalho anterior, feito com registros isotópicos das grutas
do município de Iraquara, na Bahia, Novello havia inferido
que, durante a Pequena Idade do Gelo, no Nordeste – portanto
fora da Zona de Convergência do Atlântico Sul –
prevalecia um clima mais seco.
“Os
dados dos espeleotemas de Bonito, quando associados a dados paleoclimáticos
peruanos conhecidos, indicam que, durante a Pequena Era do Gelo,
a Zona de Convergência do Atlântico Sul estacionava
com maior frequência mais a sudoeste, sobre uma faixa de
terra que vai do Peru até São Paulo, passando pelo
Mato Grosso do Sul. Por outro lado, os dados das grutas de Goiás
e de Iraquara sugerem que, durante a Pequena Era do Gelo, a Zona
de Convergência do Atlântico Sul não chegou
a Goiás, à Bahia e ao Nordeste. A Zona de Convergência
do Atlântico Sul estacionou toda na região sudoeste.
Com isso, o Nordeste ficou mais seco”, disse Novello.
Embora
os registros das duas grutas de Goiás (e outras três
grutas) não exibam uma mudança significativa na
proporção média de oxigênio 18 durante
o período da Anomalia Climática Medieval e durante
o intervalo de tempo da Pequena Era do Gelo, eles mostram uma
forte variabilidade na escala de tempo decenária e centenária
durante o período de transição da Anomalia
Climática Medieval para a Pequena Era do Gelo (entre 1100
e 1500).
Resumindo,
os registros dos espeleotemas investigados por Novello e por Cruz
indicam que, durante o período de clima mais quente no
hemisfério Norte (a Anomalia Climática Medieval),
o clima por aqui era mais seco, e que durante a Pequena Era do
Gelo do hemisfério Norte o clima no sudoeste do Brasil
era mais úmido, enquanto no Brasil central e no Nordeste
eram mais secos.
“Quando
comparamos nossos dados com outros dados isotópicos da
América do Sul, verificamos a existência de outros
períodos mais secos no passado. A chuva não foi
muito bem distribuída nos últimos 1600 anos”,
disse Cruz.
Zonas
de convergência
“Existe
uma coerência entre as mudanças climáticas
na América do Sul e os dados climáticos do hemisfério
Norte. O clima da Terra está todo conectado. Se houver
anomalias nas regiões de alta latitude, isto irá
refletir nos trópicos”, disse Cruz.
De acordo
com Novello, “quando olhamos os dados do paleoclima durante
a Pequena Era do Gelo vemos mais frio por aqui, mas os padrões
de chuva mudaram. Daí se constata que se o clima esfria
no hemisfério Norte, chove mais no hemisfério Sul.
A convergência da umidade acaba vindo para o sul. Inversamente,
quando o clima aquece no hemisfério Norte, chove menos
no hemisfério Sul”.
“Nas
regiões equatoriais do planeta existe uma banda de nebulosidade
chamada Zona de Convergência Intertropical. Ela se localiza
onde a superfície do mar está mais quente. Tal região
mais quente cria uma zona de baixa pressão para onde converge
toda a umidade, caindo assim mais chuva”, disse Novello.
Durante
a Pequena Era do Gelo, quando era maior o diferencial entre o
clima mais frio ao norte e o clima ameno ao sul, os ventos que
convergiam desde o hemisfério Norte para a Zona de Convergência
Intertropical carregavam mais umidade do que fazem atualmente.
Isso contribuía para o aumento de nebulosidade na Zona
de Convergência Intertropical, que por sua vez avançava
sobre o equador no sentido leste-oeste, saindo do Atlântico
e penetrando na Amazônia, onde começava a chover
torrencialmente. Era quando todo o oxigênio 18 acumulado
nas nuvens precipitava.
“O
esfriamento do Atlântico Norte durante a Pequena Era do
Gelo intensificou os ventos alísios de nordeste, o que
favoreceu o transporte de umidade para a Amazônia. É
o contrário do que ocorre nos anos em que os alísios
de nordeste são menos intensos, que tendem a ser anos mais
secos”, disse Cruz.
Uma vez
que a nebulosidade da Zona de Convergência Intertropical
atinge a Amazônia, ela contribui para alimentar a Zona de
Convergência do Atlântico Sul com umidade mais rica
em oxigênio 16. Aí então, a Zona de Convergência
do Atlântico Sul avança na direção
noroeste-sudeste, atravessando o Brasil em direção
ao Atlântico Sul.
Quando
as nuvens permanecem saturadas de umidade, chove muito ao longo
do trajeto da Zona de Convergência do Atlântico Sul.
Trata-se de uma chuva com maior relação de oxigênio
16. A maior prevalência desse isótopo é que
acaba sendo registrada nos espeleotemas.
Durante
a Anomalia Climática Medieval, o clima mais quente no hemisfério
Norte formou uma zona de baixa pressão para onde convergiram
ventos úmidos do Atlântico Sul. “A Zona de
Convergência Intertropical se deslocou mais para o norte.
A América do Sul ficou toda seca”, disse Cruz.
O artigo
Two
millennia of South Atlantic Convergence Zone variability reconstructed
from isotopic proxies (https://doi.org/10.1029/2017
GL0 76838), de V. F. Novello, F. W. Cruz, J. S. Moquet, M. Vuille,
M. S. de Paula, D. Nunes, R. L. Edwards, H. Cheng, I. Karmann,
G. Utida, N. M. Stríkis e J. L. P. S. Campos.